06 abril 2011

MINHA HISTÓRIA DE LEITORA

Marisa Telo Mariano, professora

Eu sempre compreendi a escola como uma coisa fantástica. Apesar da ditadura – um tanto quando mais suave – lá era um espaço em que eu não apanhava. Era estranha, tudo bem, uns cabelos esquisitos, disformes, armados. Teimavam em crescer para cima. Um nariz arrebitado somado a uns dentes totalmente separados. Mesmo assim, mesmo de poucos amigos, lá eu não apanhava.

A vida para mim era a escola. Eu não a entendia como uma fase passageira, mas a minha própria vida. Achava que tudo o que eu aprendia era vida. Achei mágico quando a diretora retirou os alunos, aos grupos, para um ambiente fechado, algo abandonado, onde nos esperavam uns professores que nunca vira. Eram simpáticos e explicaram-nos um modo de produção diferente do nosso, em que tudo era de todos, e ninguém tinha a propriedade de nada, a não ser o governo. Algo como o fim da divisão entre ricos e pobres. Achei legal a aula, nunca mais esqueci. Depois cantamos o hino como que para nos livrar dos pecados. Amém.

A tarde era um problema. A convivência familiar era algo de que eu preferia fugir. A comida era boa, minha mãe sempre fazia questão de nos alimentar bem, com pratos deliciosos. Mas, às vezes, ela estava nervosa. Os motivos das brigas o tempo roubou da memória. As dores todas foram esquecidas... Só ficaram as impressões que me lembram as causadas pelas tormentas em noites ferozes.

A tarde era um problema. Mas as avenidas arborizadas eram tranquilas. Por elas andava, até que um dia encontrei uma Biblioteca Infanto-Juvenil. A Biblioteca Álvaro Guerra. Entrei. Tínhamos de assinar um livro preto. Parecido com o que assinava na escola quando mordia os meninos. A diferença era a caneta amarrada com um barbante encardido. O ambiente tinha cheiro de argila e tinta.

Umas moças gostavam de nos sentar em roda. Tocavam flauta doce e nos contavam histórias fantásticas. A hora voava naquele lugar. Às vezes, nos levavam para fora e brincávamos nem me lembro de quê. Numa sala menor, apertada, havia livros mais jovens e simpáticos, que disputavam espaço com mesas de damas e xadrez.

Eu lia lá: Stella Carr. Sorria e apanhava um, fascinada. O caso da estranha fotografia. O gênio do crime me dava medo. Todas as semanas eu levava um para casa. Já havia vencido a fase dos romances de banca de jornal e queria livros com outras capas, com outro cheiro.

Na escola, era a Borboleta Atíria, mas o sequestro verdadeiro aconteceu mesmo na sexta-série. Meu cativeiro foi uma Ilha Perdida. Dormia e acordava naquela ilha. Mesmo depois de virar a última página, continuei personagem da história. Nas minhas andanças, esgueirava-me por uma floricultura de uns japoneses na Ferreira da Silva. Transformava-a em ilha perdida e sentia as agonias de perder-me por entre as plantas. Ficava horas andando por lá. Os japoneses se acostumaram à minha presença e, embora nunca tenhamos trocado uma palavra, eles respeitavam a minha aventura. Um dia, resolvi não mais voltar. Agora eu chorava por uma família, porque éramos seis, e fomos sendo mutilados através da história.

As visitas à Álvaro Guerra nunca paravam. Havia uma sala imensa, com estantes de livros tão antipáticos quando uma senhora sisuda e lacônica que se sentava numa mesa com seus óculos pesados e a dificílima tarefa de impor o respeito. Olhava de longe a Barsa. Às vezes a acariciava. Jurava que, assim que fosse gente grande, eu compraria a Barsa. Maldita a Internet. Acabou com o meu maior sonho. A senhora não gostava muito daquela minha atitude de aproximar-me dos livros. O nome dela deveria ser Internet! Dona Internet, a senhora não gosta que as mãozinhas sujinhas das crianças tocassem aqueles livros fascinantes.

Mas Deus ouviu meus pedidos pueris. Um dia, a professora de Ciências pediu uma pesquisa. Uma pes-qui-sa!! Isso mesmo! Foi um grande evento. E eu já até sabia onde era a Biblioteca. Em casa foi um alvoroço. Minha mãe mandou chamar uma prima cinco anos mais velha para auxiliar-me na empreitada. Agora, a Senhora Internet iria ver uma coisa.

Comprei um pacote de folha almaço e as embrulhei cerimoniosamente. Minha prima Maria de Nazareth chegou, como sempre, solícita e carinhosa. Ela seria minha protetora na sala dos livros sérios. Dei uma espiadela no tema da pesquisa: O MILHO. Sim, a orientação era esta: faça uma pesquisa sobre O MILHO. Com certeza, eu ira ver a Barsa pessoalmente, abrir as folhas brilhantes, sentir o seu cheiro. Quem sabe, às escondidas, até dar-lhe um abraço, quando a tal senhora voltasse o olhar para o seu livro. Minha prima foi a primeira a botar as mãos no livrão. Ela não parecia animada como eu, mas seu olhar era atento. A Barsa estava próxima, meu coração disparado. Era só a parte que tinha a letra M. M de MILHO, minha pesquisa!

O dedo da minha prima apontava onde eu deveria copiar. Estava lá: falava tudo sobre MILHO. Encostei o meu no dedo no dela para que ela pudesse retirá-lo. Comecei a cópia. O livro era tão grande que eu quase me debruçava sobre ele. Olhos iam e vinham. Cuidado para não amassar a folha almaço. Minha prima, impaciente, achou melhor ela mesma copiar, depois eu é que passasse a limpo, assim não ficaríamos tempo demais ali. É que ela não sabia que eu passava quase todas as tardes na Biblioteca. Ali era a minha verdadeira casa. A vida estava ali. Eu nem sabia que eu me transformaria no somatório dos livros que leria.

Hoje, eu sou os livros que li. Não os escolhi. Eles me escolheram. Cada um deles. Sou as impressões em mim cunhadas pelas emoções que os autores transmitiram. Capitu e Luíza deixaram em minhas costas resquícios de culpa. Raskólnikov afogou-me nela. O capitão Acabe me empurra mar adentro, enquanto vejo os mortos voltarem a Antares. Minha tristeza, às vezes, se chama Dom Quixote, às vezes Metamorfose...

Amei, vivi e odiei personagens. Estive em todos os lugares do mundo e todos os lugares do mundo estiveram em mim. Atirei o Monge em cima do armário, e o Executivo também. Li Bufo & Spallanzzani sete vezes. Drácula, três. Mas nunca comprei a Barsa...

E os livros que li me levaram ao magistério. Fiz juramento e tudo no dia da formatura. Nem lembro o que jurei, mas eu queria mostrar as riquezas que encontrara nos livros que me construíram.

Foi assim que voltei à escola. Não mais para fugir das surras. Para estar envolvida no processo da vida, estar envolvida com outras pessoas. No turbilhão da construção do conhecimento. Dispus-me a virar parágrafo – ate capítulo na vida de alguém. Os homens são livros, mas também são cadernos. Ajudo a virar páginas, a superar obstáculos na sala de aula.

Mas alguma coisa andava mal. Os livros haviam perdido a graça. As Barsas decrépitas escondem-se sob o pó, enquanto vendem-se CD-ROMS. As Barsas eram lerdas, estavam sempre desatualizadas... foram para o sebo. As imagens e sons, a tecnologia formatou a magia dos livros. O livro se escolarizou. A escrita havia se escolarizado.

O livro despede-se do jovem ao final da escola. O Harry tentou ajudar a galera, com a ajuda do Capitão Cueca, mas até o Menino Maluquinho cresceu. E eles eram muito mais fortes e bonitos que o gênio do crime, que o coração de onça, que o feijão e o sonho.

Os livros ficaram lindos, caros, maravilhosos. Mas encarcerados na escola... Ninguém mais pode ler sob o meu pé de laranja lima, pois não há mais quintais. O Segredo foi revelado e tudo perdeu a graça.

O professor esqueceu-se do mais importante. Quem lê é o leitor. Quem devora as palavras são os olhos de quem lê. E se os olhos assim não o querem, haverá indigestão das ideias. Só o bom leitor gosta de ler, justamente porque é um bom leitor. Parece ser bem simples: dê à criança o que lhe interessa, ela vai aprendendo a ler bem. Ler bem dá prazer, os livros vão tornando-se cada vez mais complexos, profundos, requintados. Os professores se esqueceram de ler também... E, o pior, aqueles que admitem: Eu odeio ler.

Quem é de ler, é de ler. Dos que não são, há os que não são. Mas há muitos que não sabem do que são capazes. Só me apaixonei por Machado depois dos 20. Foi quando também passei a detestar Coelho. Fórmulas repetidas já não me satisfaziam mais. Os leitores estão condenados ao crescimento e, por vezes, sentem-se imortais qual Dorian Gray.

Eu sou só isso e tudo isto: os livros que li.

Eu, Joelson, quem sabe um dia, não escreva a minha...

Fonte:  http://www.leituracritica.com.br/rev10/evid/evid04.htm

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